Symmy Larrat: “Minha drag me ajudou a entender a organização política”

O que uma das maiores ativistas pela diversidade da América Latina pensa sobre a comunidade LGBTI+? Qual a sua relação com a arte drag? Conheça melhor seu pensamento e sua vida

Por Marcellus Araújo

Symmy Larrat é paraense e nasceu na cidade de Cametá. É divertida, sagaz. Conversar com ela sobre sua vida e atuação política é fácil: ela parece sempre saber o que dizer, coisa de quem sabe o que é, mas também o que não é. A jornalista tem uma história complexa. Fez drag, foi expulsa de casa, ajudou a fundar o movimento LGBTI+ no Pará.

Hoje, ela é presidenta da maior organização pelos direitos da comunidade LGBTI+ da América Latina, a ABGLT (Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos), que foi formulada ao longo da primeira metade da década de 1990 por pessoas da comunidade que já se organizavam regularmente, e fundada oficialmente em 1995. A associação já tem 26 anos de atuação, e hoje em dia reúne mais de 300 entidades que lutam pelas causas da comunidade LGBTI+ de todos os estados do país.

Foto: Reprodução

Mas ela não é só o cargo que ocupa. Ela é uma visão profunda sobre a própria travestilidade, é uma leitura coerente da raíz dos problemas da nossa comunidade, é uma testemunha lúcida das transformações sociais positivas e negativas que o Brasil tem passado nas últimas duas décadas, é uma história poderosa e viva.

Distrito Drag – Depois de passar a ser presidida por uma travesti, como a ABGLT está hoje? 

Symmy Larrat – A ABGLT é a organização mais antiga do país, é tradicional no formato. São organizações que se filiam à ela. Essa forma de atuação trouxe certos vícios pra organização, de uma maneira obtusa, meio quadrada. Antes da minha presidência, ela vinha fazendo a reflexão de que não dava continuar com a mesma dinâmica – nem todo mundo faz o mesmo serviço, ou tem CNPJ (Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica), por exemplo -, e que a ABGLT precisava organizar outros debates, afinal a gente não é só gênero e sexualidade. Debater educação de qualidade é pauta nossa, porque quanto mais a população for mais educada, menos preconceito ela tem. Então é obrigação nossa debater qualidade, assim como assistência no SUS (Sistema Único de Saúde). A minha presidência é fruto de uma disputa contra-hegemônica, que tem a transgeneridade, o feminino, como questões centrais no nosso debate, com o máximo de interseccionalidade. Não rompemos com esse vício presidencial, e não sou eu que vou conseguir romper com isso, porque não quero ser messias de nada, nem no sobrenome! Hoje, várias organizações feministas se aproximam da ABGLT, e ela se organiza pra ter uma independência do ponto de vista da gestão. Estamos pagando dívidas, nos estruturando para organizar projetos, o que não existia antes. A gente precisa ter o nome da organização nacional, e não só investir na organização do que uma determinada diretoria representa num determinado momento. Há também uma narrativa simbólica muito forte. Vamos debater com homens que estão sendo liderados por uma mulher. Isso já basta. A gente já viu neste país o quanto isso incomoda. Há uma tendência de se questionar o tempo todo, fazer apagamento histórico de conquistas. Uma conquista da ABGLT não é uma conquista da Symmy. Mas há tentativa de alas da masculinidade de se constituir a partir das velhas práticas, fortemente financiada, que tenta esvaziar conquistas e lutas. Primeiro, começamos a organização institucional, pra depois fazer o fortalecimento institucional. E então vem o exercício da interseccionalidade como prática de disputa, que fortalece a luta contra-hegemônica da organização.

Foto: Marcello Casal Jr - Agência Brasil

DD – E como a interseccionalidade tem acontecido na prática? 

Symmy Larrat – É muito orgulho pra ABGLT que hoje, quem fala pela associação no Conselho Econômico e Social da ONU (Organização das Nações Unidas) seja a Carolina Iara, que nem é afiliada da ABGLT, mas que é da Associação Brasileira Intersexo (Abrai), e é co-veradora da bancada feminista da cidade de São Paulo. Ela teve a casa alvejada, e quando fomos denunciar a violência política, muitas pessoas foram conosco. A associação é uma ferramenta de um movimento muito maior, e a capilaridade dela tem que estar a serviço de um movimento muito maior, além dos seus muros, e essa disputa não é só pra dentro da ABGLT, é pra fora. Não tem que ser a presidenta a falar sempre, mas a afiliação como um todo. É um exercício muito difícil de ser feito, porque isso às vezes incomoda. Eu disse que somos ferramentas. A simbologia de ter uma travesti presidenta não pode morrer na ABGLT. Essa simbologia traz outras das gerações mais novas. Fico triste de ver quando a gente disputa o ego e o lugar, reproduzindo essas táticas da heteronormatividade que não tem nada a ver com a gente, e quando a gente faz isso, a gente vira ING: indivíduo não-governamental, a gente vira like. Eu acredito na coletividade!

Foto: Reprodução

DD – Como a primeira travesti a ser coordenadora-geral de Promoção dos Direitos LGBT da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República do governo da ex-presidenta Dilma Rousseff enxerga o país que temos em 2021? 

Symmy Larrat – Foi foda, tenso pra caralho. Fui coordenadora no pior momento pra ser coordenadora, O golpe estava em curso, uma disputa de narrativas muito grande. A gente fazendo a reação a isso, sabendo que as que ficariam não iam construir muita coisa. Iniciamos processos que não foram continuados, que era fazer o projeto Transcidadania nacional, construir a política nacional, que já tinha vínculo com universidades, e disso tudo só saiu o nome social. 

Foi um momento de muita resistência, mas ter estado naquele momento e visto tudo isso de perto, todo o ataque do conservadorismo – e o debate foi moral, essencialmente moral -, foi importante. Foi nítido pra entender de que lado eu tinha que ficar. Pra política pública foi importante, porque a gente não deu essa simbologia de graça pro golpe. Depois de mim, veio pro cargo uma mulher bissexual que legitimava o discurso do golpe. Mas a transgeneridade não chegou nesse espaço pela mão do golpe. Tenho a nitidez da política pública, o que queremos dela, o que a gente precisa construir.

 

DD – Durante a fase de estudante universitária, você chegou a fazer drag. O que esse momento significava naquela época, e o que ele representa pra você agora? 

Symmy Larrat – Foi muito duro, porque eu me afastei da universidade pra fazer drag, porque as pessoas não achavam legal. Fazia estágio, todo mundo gostava, me diziam que eu tava indo bem e não precisava fazer drag. Naquela época, fazer drag não era visto como arte, era muito marginalizado. Te aplaudiam, mas depois ninguém te queria dentro de casa. Não existia o glamour de hoje, com Pabllo Vittar, Gloria Groove. Foi quando eu senti mais de perto o preconceito. Mesmo depois, quando eu fui expulsa de casa. Mas existia uma feminilidade que tinha que ser colocada pra fora. Mas eu queria estudar, exercer a profissão. Eu queria ser bonita como a Roberta Close, não deu certo. Queria trabalhar e exercer a profissão, não deu certo. Queria ser rica pra fazer a transição, não deu certo. Mas a drag ajudou a externalizar outras coisas. Eu fui uma drag do escracho, fazia humor, e denunciava as questões políticas, preconceitos, brincando com isso, falávamos disso. E me ajudou a descobrir o grande potencial de comunicação, e a ser conhecida por isso. Meu nome é o mesmo que adotei nessa época, e essa drag foi protagonista dessa organização política que começamos no Pará, e viajávamos pelo estado todo, organizando a movimentação. Minha drag me ajudou a entender a organização política, a entender com mais generosidade coisas tão duras da vida, me ensinou a organização política através do nosso orgulho. E a drag me levou a encontrar na transgeneridade, a aceitar e ser isso. A Symmy Larrat existe a partir da arte drag, não consigo me ver travesti sem trazer a pipoca da arte drag comigo. Foi essa fase entre o Marcelo e a Symmy Larrat travesti. A Symmy drag foi esse casulo. Um casulo para a borboleta! Eu tenho muita saudade dos palcos. Era convidada pra apresentar e fazer show. Essa comunicação intensa, com a devolutiva viva, eu sinto muita falta.

Foto: Reprodução

DD – Com tantos retrocessos e legitimação do ódio por parte do atual governo federal, onde está a força de luta das pessoas LGBTI+? 

Symmy Larrat – Primeiro, assim… antes, a gente teve um gostinho da cidadania. Sabe quando você abre a panela de feijão e sente o cheiro? Você quer comer o feijão, bicha! O cheirinho da cidadania abriu o apetite. É isso o que a gente quer, estamos certas disso. Nesse processo, a gente perdeu algumas, porque algumas se perderam para o capital, entuchadas no filé que estão comendo. Não sei como é a digestão delas. Prefiro meu feijão e ovo com farinha. Mas essa ameaça constante nos dá ganas de ir pra cima. O gostinho da cidadania e a revolta das nossas mortes são o combustível que nos leva pra frente. Por outro lado, a gente sabe que a democracia que estava em curso não nos contemplava, e que não tem nenhum projeto de sociedade que nos contemple. Então, o que a gente quer é disputar a sociedade, a humanidade, porque se nós estivermos dentro, a gente olha pra traz e não deixa ninguém de fora. Se você coloca uma corpa travesti no seu rolê, você coloca todo mundo. Somos uma potência pra acabar com essa lógica patriarcal. Essa lógica coloca um monte de barreiras, vai criando inimigos imaginários, e se as pessoas percebem que isso é uma mentira, tudo isso vai acabar, e aí conseguimos conversar com todo mundo. Atravessando a ideologia de gênero, todo mundo consegue nos ouvir.

DD – Como o movimento LGBTI+ pode reduzir suas contradições internas? 

Symmy Larrat – Refletindo sobre a sua masculinidade tóxica, sua cisnormatividade, tão tóxica quanto, e sobre a sua branquitude, de trás pra frente. Acho que é assim que a gente vai fazer, porque pensar isso, faz os egos caírem. Todas nós reproduzimos isso, somos fruto dessa sociedade. A gente segrega, seleciona. A gente disputa muito isso no movimento. Esses incômodos passam pelo fato de não aceitarmos que precisamos mudar isso. Essas três coisas são o guarda-chuva pra tudo o que podemos citar. 

Foto: Reprodução

O que percebo da população LGBT é que todo mundo quer a passabilidade, porque quem tem é melhor do que quem não tem. Quero casar, quero que o padre batize meu filho, fazer fortuna, deixar herança. Não quero ser periferia, quero ser centro, ou seja, o tempo todo a gente quer o que a burguesia prega que devemos querer. Não tô falando que essa é a nossa meta. Essa é a reprodução inconsciente. O que eu realmente quero é que as pessoas olhem pra mim e vejam potência e beleza na minha travestilidade. Quando você vira essa chave, você sabe onde quer chegar. E aí vem a autoestima, a potência. Não quero parecer mulher, sou travesti, me respeita! Bora parar por aqui! Quer dizer que ser travesti é ser feia, mal educada, masculinidade? Parecer mulher é um troféu, uma legitimidade de existir dentro e ao lado da cisgeneridade? Isso é muito cruel, não quero esse joinha pra mim. Precisamos reconhecer nossos privilégios, parar de reproduzir essas lógicas quando estamos construindo outras fontes, outros caminhos. Eu me regozijo quando travestis negras estão chegando a outros lugares, porque me vejo nelas, e eu preciso que a cisgeneridade também se veja em mim.

 

DD – Você disse recentemente que não superou a vulnerabilidade porque, se um dia a política não te der mais emprego, você não sabe se uma empresa vai te dar. Existe alguma mulher trans ou travesti que tenha superado completamente a vulnerabilidade? 

Symmy Larrat – Eu não conheço. Se você conhecer, me apresente, porque sou eu quem quero entrevistar ela! Quando não é um olhar de acusação, é um olhar de pena. E outra, a gente compra a ideia de que a Roberta Close é um glamour na Europa, mas temos que agradecer muito a essas pessoas, porque elas passaram por muita coisa, e sempre vão passar. Ela teve que ir embora pra mudar de nome, e hoje, aqui, a gente pode.

 

DD – Qual a sua bebida preferida? 

Symmy Larrat – Água! Todo mundo deveria ter acesso à água. Eu sou amazônida, água pra mim é tudo!

Foto: Marcello Casal Jr - Agência Brasil
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