Heliana Hemetério: “Ignora-se o protagonismo das lésbicas negras”

A historiadora e ativista pelos direitos humanos conversa com o Distrito Drag sobre direitos sexuais e reprodutivos, dinâmicas do racismo e da LGBTIfobia, desafios das políticas de saúde pública, e perspectivas para a população negra e LGBTI

Por Marcellus Araújo

Conversar com Heliana Hemetério gera uma dúvida: é a força de sua luta que torna essa mulher tão inteligente e experiente, ou a inteligência e a experiência de décadas como ativista a tornam tão forte? Negra, lésbica, mãe e avó, ela agora também adiciona idosa ao seu olhar e ao seu trabalho. Heliana começou a atuar na organização social de luta pelos direitos humanos em 1986. Atualmente, aos 69 anos de idade, a carioca vive com a esposa em Curitiba, de onde prossegue desenvolvendo seu trabalho em diversas frentes.

Foto: Alexander Hugo

A historiadora é especialista em gênero, raça e sexualidade, e dedica sua pesquisa acadêmica e de ativismo para entender as dinâmicas da violência estrutural racista e LGBTIfóbica. Hoje, ela atua como articuladora nacional da Candaces Rede Nacional de Lésbicas e Bissexuais Negras Feministas, é conselheira da Junta Diretiva do Fundo Emergente da América Latina, e também é vice-presidenta da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais e Travestis (ABGLT).

“A camiseta escrito ‘vidas negras importam’ é muito bonita e importante de a gente sair na rua vestindo. Mas de que vidas negras você tá falando? Onde ficam as nossas dores? Dois dias na TV e acabou. Isso é racismo. Primeiro mata e depois pergunta o que foi que fez. Qual a sua postura enquanto homem branco que tá aí escrevendo sobre racismo? Com quem você tá falando? Há anos dizemos que as lésbicas precisam ir pra universidade, mas a gente precisa saber que quando vamos pra uma comunidade conversar com as pessoas, temos que saber como conversar com elas. Sem contar o movimento religioso e da fé, o controle social, obedecer a padre, pastor e pai de santo. O kardecismo diz que tudo é reencarnação, e o livre arbítrio que permite que você possa usá-lo pra ser antirracista, onde está?” Assim Heliana inicia o nosso papo.

Contundente, sábia e sagaz, ela fala sobre direitos humanos, acesso à saúde, direitos sexuais e reprodutivos, política pública, racismo, LGBTIfobia, e sobretudo, sobre alternativas e perspectivas para o futuro da população negra e da comunidade LGBTI no Brasil. Leia abaixo a entrevista.

Foto: Reprodução

DD – Muito se fala atualmente em interseccionalidade. Como ela pode ajudar a entender o painel social das violências racistas e LGBTIfóbicas? 
Heliana – A palavra interseccionalidade é charmosa. A academia cria modas, joga a palavra e todos vão no sentido dela. Porém, nós somos considerados movimento identitário – e é preciso ser dito que quando falam em identitário, querem dizer que estão nos incluindo, e eu odeio a palavra inclusão. Eu sou uma mulher negra, idosa, lésbica, de candomblé, mãe de dois filhos e tenho um neto. Isso sou eu, Heliana, o dia inteiro. E o sistema não reconhece. Ele permanece branco, cisgênero, heteronormativo e racista. Esses recortes, atravessamentos, o que não está posto na ordem desejada pela manutenção dessa elite, está fora. Reconhecer a interseccionalidade é reconhecer o ser humano, cidadão com todos os seus direitos, atravessamentos, sabendo que eles os colocam na luta de direitos humanos.

 

DD – Especificamente no Brasil, com o contexto político atual, as luta contra a violência e pelo direito à vida dos corpos negros e LGBTIs se fundem mais, ou tendem a se separar? 
Heliana – Eles se fundem no momento em que você pega as pesquisas e vê que as mortes de travestis e transexuais são negras, a violência contra as lésbicas negras, a juventude negra. O sinal verde da morte foi dado para as populações LGBTI e negra, e a população em geral não percebe, justifica, não entende, acha que não é bem assim. Mas nós, que somos ativistas, sabemos que o racismo traz o maior percentual dessa violência. A maioria dos assassinatos é negra. E tudo isso porque o racismo e a LGBTIfobia é grande, mas temos ainda o pensamento que acredita que a população negra tem o maior combustivel de sexo, e quando você é LGBTI, visto como super homem, super mulher, como vc é LGBTI? Você foge do que está posto? Você desperdiça todo seu potencial de sexo selvagem, nessa visão dos brancos sobre nós. Por isso que digo que as lésbicas são ignoradas, porque o movimento LGBTI é machista. Isso é preciso ser dito e não podemos mais negar. A luta que foi pra colocarmos a Symmy Larrat como presidenta da ABGLT (Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos) foi imensa, mas os homens gays brancos, do sul, insiste em nos subalternizar. O homem negro é subalternizado, a mulher negra, então você imagine a transexual negra. Pergunte a uma travesti na rua quanto vale uma travesti branca e uma travesti negra. Quem morrerá mais?

Foto: Reprodução

DD – Como podemos localizar os desafios das mulheres negras lésbicas nesse contexto? 
Heliana – Quando eu sou articuladora nacional do Candaces, que surge em 2007, as mulheres lésbicas negras se reúnem. Primeiro, a gente tem que estar nesse lugar pra debater orientação sexual e racismo, porque o movimento de lésbicas, com tudo o que discute o gênero, não discute a raça. É uma pauta necessária: gênero, raça e classe. Porque o movimento LGBTI é classista. Na construção do lesbicenso, percebemos que a construção é toda branca e acadêmica. E a periferia? É nela que você vai encontrar as lésbicas negras, pobres. Isso dentro de um espaço dividido. O espaço de lésbicas brancas não é o mesmo frequentado pelas lésbicas negras. Agora, outra luta é sermos sempre protagonistas na luta pelos direitos humanos, mas não sermos reconhecidas. Ignora-se o protagonismo das lésbicas negras. Mas por que estamos sempre na linha de frente? Porque trabalhamos no debate interno com as mulheres negras, como movimento, sempre sinalizando que é preciso reconhecer o protagonismo delas. Já não aceitávamos, mas o tensionamento ficou insuportável. Ou a branquitude assume os privilégios, que só existem porque nós sustentamos e carregamos esses privilégios e esse capitalismo, ou teremos problemas muito sérios.

 

DD – Quando falamos em planejamento familiar, o que é preciso compreender sob o ponto de vista das mulheres negras lésbicas? 
Heliana – Neste exato momento tem duas interpretações. O planejamento a que todas as mulheres têm direito, e o planejamento que o governo quer nos colocar. O Norplant (primeiro contraceptivo por implante subdérmico, ou seja, embaixo da pele, registrado no mundo, proibido no Brasil em 1986) foi usado e gerou efeitos colaterais coletivos. Mas a política não inclui orientações de gênero. Não se abre o direito à inseminação artificial. O SUS (Sistema Único de Saúde) tem, mas para mulheres hétero que querem ter filhos. A política dos direitos sexuais não nos dá ainda os direitos sexuais. Meu corpo me pertence. Os direitos sexuais são para deliberar sobre seu próprio corpo. Corporeidade é isso. Nós mulheres negras lésbicas e bissexuais nunca estivemos incluídas nessas políticas porque nossos direitos sexuais sempre foram deixados em segundo plano. A preocupação é sempre com mulheres brancas cisgênero heterossexuais, ou seja, “vamos cuidar pra que vocês mulheres pretas e pobres não nos encham o saco com esses filhos”. Tudo isso faz parte da política de desmonte que estamos vivendo.

Foto: Reprodução

DD – E quando falamos de acesso à saúde, inclusive de saúde mental? 
Heliana – Temos a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra no Brasil, criada (em 2009) depois de muito trabalho e pressão. Mas quem faz essa política não é o Ministério da Saúde, é a ponta. E o gestor da ponta é racista, e não implementa a política. Como conselheira nacional de saúde, fiz a formação em várias regionais, e quem está na formação? O pessoal administrativo. Mas o médico não está na formação, e não sabe, por exemplo, o que é anemia falciforme, que é uma anemia da população negra. Tem todo um aparato, mas o acesso de fato não tem, porque a ponta é quem tem que ter. 

A mesma coisa é a Política Nacional de Saúde Integral LGBT (que foi criada em 2011). Se a identidade de gênero e a orientação sexual fossem reconhecidas, não precisaríamos da política LGBTI. Se fôssemos reconhecidas, estaríamos incorporadas nas políticas maiores. Nada é diferente na minha vivência lésbica ou bissexual. As doenças são as mesmas. Me diga qual a diferença da dor de cabeça de um homem trans, minha ou da minha vizinha? Se um gay aparentemente gay chega numa unidade de saúde passando mal do estômago, ele tem gastrite, ele não precisa fazer exame de HIV. Isso acontece o tempo todo com as transexuais.

 

DD – Onde você acredita que estejam as perspectivas para o futuro do combate à violência racista e LGBTIfóbica? 
Heliana – A juventude consciente, desperta. Eu herdei de Beatriz Nascimento e muitas mulheres que vêm de longe. Eu trabalhei pelas cotas. Vocês vão trabalhar pela continuação das cotas. Todo movimento hoje é pra acabar com as cotas. Na minha juventude se dizia que os negros sofrem racismo porque os pretros são pobres. Não sofremos racismo porque somos pobres. Nós somos pobres porque somos pretos. A juventude já entendeu isso. Você vai ler Fanon (Frantz Fanon, filósofo e psiquiatra), ele é LGBTfóbico, mas a questão do racismo é válida. O movimento LGBTI não traz pro debate as relações inter raciais. Ninguém deixa de ser racista por comer uma mulata. A cultura do embranquecimento vem toda nesse bojo, do embranquecimento. Na minha concepção, a juventude vai dar conta à sua maneira, como nós demos na nossa época. Eu decido politicamente dialogar com pessoas mais novas. Hoje eu sou idosa, mas você também vai envelhecer. Quando você chega a uma idade, a preocupação de não sair do cenário é um ponto. Eu tenho 69, tô cumprindo meu papel. Sempre seremos lembradas. Porque senão você começa a ficar no lugar do ressentimento. A história é a mesma aqui dentro e fora do Brasil também, a luta é a mesma. Eu tenho que fazer troca de saberes. Quando escutar a menina nova, de vinte e poucos, a mulher de quarenta, e saber como você tá vivendo a sua lesbianidade, e o racismo. As dores que o trabalho e a família produzem são as mesmas dores que produziram em mim. A diferença é que hoje o debate faz com que ela reconheça a dor e de onde ela veio, e mesmo fora do ativismo ela pode entender tudo isso. A fala do funk é forte e faz a crítica. A nossa fala reverberou como uma fala política, e eles agora ouviram e vão carregar, e eu fico feliz.

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