Simone Demoqueen: “A cultura ballroom também é aquilombamento”

A mãe da Casa de Lafond fala sobre as balls e sobre como a performance no vogue é resgate constante da ancestralidade não só das vidas LGBTI pretas, mas de uma luta que gerou o movimento pela diversidade como o conhecemos hoje no mundo todo

Por Marcellus Araújo

WhatsApp Image 2021-04-28 at 20.53.35 (1)
Foto: Simone Demoqueen

Simone Demoqueen é a mãe da Casa de Lafond, uma das casas atuantes da cultura ballroom do Distrito Federal e do Rio de Janeiro. Gabriel Macêdo é o estudante de Museologia que faz o corre por trás do close. Maternidade é uma questão muito presente no seu trabalho como artista. Além do seu papel na organização da casa, o nome de drag é o de sua mãe biológica.

Simone é afiada, rápida nas respostas eloquentes e coerentes, e mais ainda no raciocínio. Sabe o que faz, porque faz, por quem faz, e principalmente, de onde veio. Ou melhor, de quem veio.

De Xica Manicongo a Ruth Venceremos, ela traça suas referências de ativismo, de militância e de luta das pessoas LGBTI pretas ao longo da história, pra falar de dança, de cultura, de voguing, de arte, e de ancestralidade.

Distrito Drag – Quem é a Simone Demoqueen?

Simone Demoqueen – Bom, pra começar, quem está por trás dela é o Gabe. A Simone é uma força que surge dentro de mim no período em que eu preciso acessar espaços e sentimentos, em que eu preciso me aproximar de pessoas, no momento em que me entendo como mãe de uma casa. As drags hoje em dia surgem muito das referências de RuPaul ‘s Drag Race, e não de uma ballroom. Ser mãe me dá a perspectiva de entendimento de como meu corpo é visto na sociedade. Por mais que na ballroom a gente não tenha essa questão de a mãe ser necessariamente uma figura feminina, porque na verdade o que importa é a função, responsabilidade, e amor em se propor a ser mãe de alguém. Aí, dentro desse contexto, é que surgiu a necessidade de experimentação, e também diz respeito a uma vontade minha anterior, antes mesmo da nossa primeira casa.


DD – Qual era a primeira casa?

Simone – A House of Caliandra, que foi a segunda casa do Centro-Oeste, fundada por mim junto com o Guajá Caliandra. Em setembro de 2017 fundamos, em janeiro  de 2018 começamos as balls.

Foto: Webert da Cruz

DD – Qual a origem do nome da sua drag?

Simone – Simone vem da minha mãe, que é minha maior referência de mulher e de pessoa. E é um nome que eu gosto muito. Antes mesmo de entrar na cultura ballroom, eu jogava vôlei, e aqui em Planaltina as gatas são muito do afronte, porque essa é a postura de resistência e enfrentamento. E eu, enquanto bicha, me entendia dessa mesma forma. Porque foi como eu aprendi a ser bicha, no vôlei, em Planaltina. As realidades são diferentes, e as pessoas são diferentes. Quando eu entro na UnB [Universidade de Brasília], essa postura de apontar o que eu quero, o que eu penso, de estar sempre com a resposta na ponta da língua, ganhou um destaque naquele ambiente, e as pessoas começaram a me chamar de demônia, e daí veio Demoqueen. Tenho orgulho desse nome, porque me entendo como uma pessoa combativa e esse nome é combativo, principalmente quando falamos de corpos de bichas negras.

DD – E você ingressou na UnB pra estudar o quê?

Simone – Estou terminando Museologia. É um curso que se relaciona com a cultura ballroom pela memória. O museólogo Mário Chagas diz que memória é poder.

 

DD – E como essas coisas estão relacionadas?

Simone – A ballroom é um mecanismo de sobrevivência pra corpos não normativos, dissidentes. E nessa cultura, a gente sempre fala das pessoas pioneiras, de quem veio antes de nós. Temos muitos rituais pra sempre trazer essa ancestralidade. Quando falamos de ancestralidade, principalmente de corpos LGBT negros, temos dificuldade de encontrar ancestrais. Ninguém fala de Xica Manicongo, por exemplo. A ballroom surge como uma forma de rememorar os nossos. Durante muito tempo a Marsha P. Johnson foi esquecida, principalmente entre as gays brancas, e só voltou a ser lembrada depois do documentário que lançaram há alguns anos sobre ela, mas nas balls ela nunca foi esquecida.

WhatsApp Image 2021-04-28 at 20.53.35
Foto: Maju Correia

DD – Quais as suas principais referências artísticas e de vida? 

Simone – Primeiro, a minha mãe, que está no meu nome. Artisticamente, é muita gente que me constrói. Existem referências pra vários campos. Na militância, penso em Ruth Venceremos, de cara. Na dança, penso em vários corpos trans, femme queens, que criaram essa característica dentro do voguing. Com certeza todas as minhas filhas da Casa de Lafond são referências pra mim. Várias pessoas incríveis dentro da cultura ballroom.

DD – Qual a importância da ballroom pra comunidade LGBTI no Brasil?

Simone – É uma loucura pensar o quanto os balls são marginalizados dentro da cultura LGBTI, e como o movimento LGBT negro dá base para o movimento LGBT branco existir. E é importante também a gente diferenciar algumas coisas. O voguing é um movimento estético dentro de uma cultura maior. No ball a gente tem os títulos, os sistema das casas, e tudo isso é fundamental pro movimento LGBT. Tudo começa dessa cultura, porque das ballrooms saem muitas pessoas que tomam projeção histórica. Quando penso na Marsha, imagino que é muito difícil ela não ter tido uma aproximação com a Crystal LaBeija. Se a Crystal teve que fazer uma jornada duplamente diaspórica e criar um ambiente onde ela seria efetivamente aceita, imagine a Marsha. Então, a ballroom está a todo momento falando sobre corpos trans. Hoje em dia, também sobre corpos trans masculinos. E a gente não vê isso acontecendo no debate central do movimento LGBT. Claro, existem diversos movimentos que abrangem a pauta dessa forma. E a negritude como pauta primordial acontece dentro da ballroom. Quando surgiu o HIV, foi a negritude, as pessoas latinas e as trans que estavam à frente das mobilizações. Hoje, a pandemia do coronavírus afeta a favela e a periferia de forma totalmente diferente de como afeta os centros de privilégio. E naquela época a luta pela sobrevivência se dava dessa mesma forma. A sobrevivência também é psicológica, além de financeira. Grande parte do movimento LGBT coloca algumas pautas como prioritárias, mas são pautas que não abrangem muitas pessoas que estão dentro desse movimento. Temos que questionar onde as pessoas pretas e trans estão dentro do movimento? O quanto falamos de Márcia Pantera? Por que ela nunca está em voga? Ou a Leyllah Diva Black, por exemplo? Temos que questionar quem estamos colocando à frente, quem estamos impulsionando. Rico Dalasam foi jogado no lixo pela comunidade por ter rivalizado com uma pessoa branca. O corpo negro está em constante diáspora.

Foto: Ana Catarina Duarte

DD – E qual a relação da dança, como uma categoria artística ampla, com o voguing?

Simone – Quando conheci o voguing, eu nunca tinha dançado nada. Quando penso no vogue, eu penso necessariamente em performance. Antes de o vogue ser chamado de vogue, era chamado de performance. Eu danço vogue femme. Tem outras linguagens, como o pop, dip e spin, o old way e o new way. O vogue femme veio de uma pesquisa que vem de espaços que não estão relacionados aos espaços de pesquisa mais “oficiais” da dança. A gente reflete que elas desenvolveram essa linguagem dançando o old way de uma jeito diferente, e acabou gerando o vogue femme, que fala muito sobre autoestima, autoafirmação, causa uma reflexão sovbe desconfortos, e possibilita confortos sobre o nosso proprio corpo. Hoje, o vogue está presente em muitas linguagens e dá base pra várias linguagens contemporâneas de dança. A pessoa que talvez seja mais conhecida pela dança vogue seja a Madonna, e eu fico maluca com isso, porque é muito doido a gente relacionar essa linguagem ao clipe de uma mulher branca, mesmo que ela tenha dado alguma devolutiva pra quem é parte dessa cultura. E por causa dessa representação que não diz respeito à totalidade de uma cultura muito maior, muita gente entra em contato, mas isso também desestimula as pessoas a pesquisarem o que realmente é a cultura ballroom, o voguing.

Foto: Simone Demoqueen

DD – Qual a importância do voguing para o movimento drag?

Simone – Num contexto geral, o movimento de drags é muito influenciado pelo Rupaul, e nesse programa existe muita apropriação. Se você vê Rupaul, você não vê o vogue, você vê uma apropriação. Ser uma drag da ballroom é me questionar constantemente, porque são dois universos que se conflitam em alguns pontos. No movimento drag tem mais grana, muita gente branca, é muito feliz, mais fácil de conquistar a mídia, a economia. E o que a gente fala nas balls muitas vezes não desce na garganta. E quando se entra tanto na lógica capitalista, a entrega é grande, porque a exigência pelo novo é constante e exclui toda possibilidade de referência. Muitos movimentos são apropriados, catapultados, sem dar a devida referência, sem trazer quem fez pesquisas que levam anos pra se concluírem.

 

DD – E como localizar a cultura ballroom dentro de todas essas dinâmicas?

Simone – A cultura ballroom, quando nós nos organizamos em casas, também é um processo de aquilombamento. É um lugar de acolhimento. Se você, que é uma bicha branca, chega numa ball pra se divertir, você vai ser acolhido, desde que você possa contribuir com a cultura, o processo é esse. E apesar das cisões, eu acredito muito na comunidade LGBT, porque estamos passando por preconceitos muito semelhantes. Mas temos que refletir dentro do movimento também.

Foto: Daniel C Nery

DD – Sua drag é uma personagem sempre separada da pessoa que performa, ou elas se integram?

Simone – Mesmo que a gente quisesse se separar, é impossível. Estamos falando de algo que está nas nossas relações familiares, amorosas, de trabalho. Mesmo que a arte drag aconteça no momento da apresentação, quando você chega na mesa de um bar com um boy e diz que é drag, esse boy vai fugir. Quando você fala pra sua família que faz drag, isso pode ser um caos. Não é todo mundo que entende, e as pessoas fazem conexões equivocadas, muitas vezes, confundem as coisas. E por todos os preconceitos que já encontramos na sociedade, as pessoas relacionam drag à ser travesti, e a travestilidade à prostituição. Todos esses são equívocos. Existem travestis drags, mas drag não necessariamente diz respeito a travestilidade como realidade. Temos sempre que pensar sobre como nos relacionamos com as pessoas, por quem e como estamos lutando. Por exemplo, se nós, drags da ballroom, performamos buscando referência em corpos trans femininos, temos que saber o que estamos fazendo por elas também, e não apenas buscarmos performar ou nos parecermos como elas. Para o que eu quero representar, eu tenho que pensar nas minhas ações.

 

DD – Qual a sua bebida preferida?  

Simone – Ah, caipirinha! Eu adoro caipirinha. De limão, tradicional, com Velho Barreiro.

Deixe uma resposta