Dayse Hansa: “Importante pensar que nossas lutas tenham encerramento”

Ela produz, difunde e ajuda a fortalecer a cena cultural LGBTI+ no DF e não perde de vista que a visibilidade lésbica só existe para dar resposta aos problemas criados pelo machismo

Por Marcellus Araujo

Idealizadora e líder da Associação de Produtoras e Trabalhadoras da Arte e Cultura (APTA), atual presidenta do Conselho Regional de Cultura do Plano Piloto, uma das pessoas responsáveis pela recente retomada da Associação Brasileira de Festivais Independentes (Abrafin), criadora do Festival Bocadim, e tantas outras coisas, que foi impossível listar tudo. Dayse Hansa é produtora e gestora cultural, artista, militante e ativista feminista, negra e lésbica. Todas essas atuações fazem dela muito mais que uma mulher forte, algo que sempre esperamos de uma mulher LGBTI+. Dayse é, além de forte, uma mulher atenta.

A história dela começa no movimento feminista e no movimento negro. Acompanhava o movimento de juventude no Distrito Federal, com atuação também em nível nacional. Paralelamente, a pintura e a arte digital também passaram a conviver com a atividade de produtora de um espaço de cultura de Brasília que trabalha com crianças, o Teatro Mapati, onde ela entrou em 2007 e permaneceu por mais de dez anos, experiência que ressignificou seu ativismo. “Foi fundamental a minha passagem pelo teatro. Esse ressignificar é ver que a gente pode falar de amor e dor, mas também das nossas reivindicações, a arte é um manifesto muito vivo. Toda e qualquer arte, porque ela manifesta o ser, o seu sentimento, essa foi a grande virada da minha militância”, ela define.

 

Dayse Hansa 2019 - Acervo pessoal
Dayse Hansa 2019 - Acervo pessoal

Em 2014 ela criou um projeto de forró que estabelecia um espaço seguro para que as pessoas se reunissem, o protótipo do que é hoje o Festival Bocadim. “Isso foi no Balaio Café, e depois fizemos mesmo o festival, com 2.500 pessoas, uma programação super local, e estamos aí no processo, desde então, nessa labuta”, conta. O Bocadim, segundo Dayse, é a forma que encontrou de se reposicionar na própria militância.

“A gente coloca no palco do festival pessoas LGBTI+, com muita música, mas também com oficinas de drag queen e king, exposição de arte visual, e é um projeto que a gente tem experienciado, ele não é rígido. A música popular brasileira é quase toda hoje de pessoas LGBTI+, mulheres, pessoas não-binárias. Isso dá um calorzinho no coração porque, a despeito de termos um país muito conservador, muito violento, ouvir uma criança de sete anos cantando Pabllo Vittar, o quanto isso é referencial pra uma cultura, que é a identidade de um povo, que a gente quer que seja humanamente responsável com todas as pessoas, porque essa criança a princípio não performa uma identidade de gênero, uma sexualidade. Ela tá se divertindo”, defende.Mas a mão boa para produzir festivais deu sinais antes disso. Em 2005 ela produziu o Festival de Cultura Lésbica, momento em que viu a importância da atividade cultural para o ativismo. “Nesse momento reunimos fanzines, filmes, sarau de poesias, então essa ideia de realizar festivais vem de um tempo, já estava querendo virar festivaleira desde esse momento”. lembra ela, numa conversa que rendeu muito. Confira:

Foto: Reprodução

Distrito Drag – O que é visibilidade lésbica no seu entendimento? 

Dayse Hansa – Hoje pra mim, aos 39 anos, visibilidade lesbica é a denúncia de violações que a gente sofre, e orgulho de quem somos, de quem amamos. Agosto como o mês da visibilidade lésbica só existe porque temos problemas. O marco do dia da visibilidade (29 de agosto) é um movimento de dissidência, a necessidade de acolhimento. A nossa geração foi muito violentada, as anteriores também. Quando você se coloca como mulher lésbica nessa sociedade, você assume uma postura política. Precisamos que essa discussão seja naturalizada, mas no sentido de que essas discussões sejam constantes. Essa é uma orientação sexual, não pode ficar invisível, porque é natural do machismo invisibilizar mulheres. Há muitos anos eu penso que é muito importante e saudável a gente trabalhar com períodos. Hoje a minha militância se baseia em imaginar que daqui 50 anos não teremos mais violências no mundo. E isso chega a nós, pessoas LGBTI+. Quando a gente estabelece cronogramas, mesmo que no Brasil hoje seja quase impossível pensar nisso, acho importante pensar que nossas lutas tenham um encerramento. Embora eu vá lutar até o último suspiro da minha vida, não podemos imaginar que nossas lutas levem mil anos pra se efetivar. Isso precisa nos motivar a entender que estamos avançando para que as pessoas vivenciem a plenitude de viver e serem respeitadas, com todas as identidades que manifestem. Hoje minhas lutas tem um programa, digamos assim, mirar um horizonte, termos um prazo. Outra coisa importante é renovar os quadros nos movimentos sociais, passar o bastão, pra que as novas gerações caminhem, levem as pautas pra frente, pra chegarmos a um ideal de humanidade. Hoje temos uma humanidade completamente doente. Se você parar pra pensar, somos tribais, e a arte e a cultura estabelecem pontes entre pessoas diferentes, por isso ela é tão necessária. O que vivemos hoje é uma confusão, muito bem orientada, e os pólos pra mim não são a maioria, e a cultura ajuda nesse processo. Na nossa casa temos pensamentos diferentes, e tá tudo bem, porque o respeito precisa prevalecer. Falta muito pra sociedade momentos de pausa e reflexão, e o entendimento de que precisamos respeitar toda e qualquer pessoa diferente de nós, e por isso eu me colocar como uma mulher sapatão traz uma carga política extremamente forte. A gente ressignifica o que era ser chamada de sapatão, pra termos orgulho do que somos, porque temos que exercitar esse orgulho todos os dias. Celebramos que estamos vivas aqui hoje, apesar do feminicídio. E o próprio feminicídio não é só o espectro da relação amorosa, o feminicídio foi cometido por milhares de anos e ainda é cometido por conta da relação do machismo e das suas desigualdades.

Distrito Drag – Quais os desafios políticos das mulheres lésbicas hoje?

Dayse – Os desafios políticos estão postos todos os dias. Ser uma mulher lésbica no mundo é estarmos sujeitas a violências físicas e simbólicas, poque o padrão é dogmático, heteronormativo. O desafio é viver na sua plenitude. Viver é estar viva e cidadã da sua própria existência. A Marilena Chauí fala muito dessa portabilidade da cidadania. Você já nasce cidadão, cidadã, mas alguns corpos, algumas corpas, vão ter que conquistar essa cidadania ao longo da vida, ou nem conquistam. O desafio geral é o machismo estrutural, que não compreende que pode haver uma relação afetiva entre duas mulheres, ou nos reduzem a fetiches, direcionando a sexualidade, como se você fosse apenas um ser sexual. Esse é só um aspecto meu. Eu sou a Dayse, chegando aos 40 anos, que vim da classe C, que estou hoje na classe média, mas tenho uma família que está ainda nessa classe, sou artista, gestora, ativista. São muitos demarcadores.

Distrito Drag – Onde estão os principais obstáculos das mulheres trabalhadoras de arte e cultura?

Dayse – O poder do homem, do falo, da figura protetora, onde se cria as desigualdades. Até os anos 1960 se discutiu muito o ser homem, o ser mulher. Depois chegam os estudos de gênero, que são os estudos das relações de poder. A criação da APTA parte muito desse questionamento. O que nos liga é o gênero, dentro dessa identidade binária, há uma necessidade de pensar nessas desigualdades. É muito visível. Se você pega os principais festivais da cidade, quem lidera esses festivais, o núcleo duro de gestão e produção, são quase sempre homens. As mulheres aparecem nas camadas contratadas, portanto submetidas a uma gestão, e nos bastidores, o backstage, temos muitas mulheres precarizadas, e nisso se incluem assédios morais, sexuais, além da precarização do trabalho dessas mulheres. De forma mais ampla, o nosso setor é muito informal. Quase o tempo todo estamos na informalidade. A maioria das pessoas não tem um contrato CLT, garantias de aposentadoria, contra acidentes de trabalho. Mulheres acabam sem direitos a afastamento quando são mães e ficam sujeitas ao ostracismo quando têm filhos, porque você trabalha sob demanda. Na Colômbia e no Chile o movimento cultural é diferente. Na Colômbia, com todos os problemas, dez por cento do PIB é pra cultura. Isso diz muito da importância da cultura pro povo. E as pautas mais ortodoxas e conservadoras ganham guarita no atraso. A situação das trabalhadoras é precária. Não tenho esperanças de que isso vai mudar muito rápido. E com as mudanças na legislação atual, isso se agrava. Não é possível viver de edital, há muito investimento próprio e voluntário. É preciso haver profissionalização, porque a pontinha da pirâmide é muito restrita, mas abaixo estamos em muitas.

Distrito Drag – Você lidera atualmente o Conselho Regional de Cultura do Plano Piloto. Esse  trabalho tem te permitido entender como a produção da cultura LGBTI pode ser mais lésbica?

Dayse – Todo espaço de controle social é extremamente necessário pra proposição de ações, e disso pode surgir projetos de leis, que podem transformar. São espaços caros pra nós. No conselho, estamos em análise das políticas que estão em execução, olhando para os equipamentos culturais, porque aqui é o centro, onde estão grande parte dos equipamentos. Não tem sobrado muito tempo pra discutir as questões identitárias. Nós, no centro, vivemos uma realidade muito diferente das realidades das periferias, a começar pela segurança da sua própria vida… quiçá o acesso aos meios de cultura. Na região do Plano Piloto, temos tantos equipamentos, tombados inclusive, que precisam de um olhar mais atencioso. Fizemos recentemente uma discussão sobre o Museu da Bíblia, que é um projeto que vai estar no Plano Piloto mas vai afetar a vida de todas as pessoas do DF. Temos ainda a questão em torno da Funarte, a lei do silêncio, porque tudo isso influencia diretamente nas nossas vidas. Estamos trabalhando em grupo, tirando deles relatórios e apresentando ao poder público pra desafogar nossas urgências.

Dayse Hansa em 2005 - A - Manifestação 8 de março - Credito da foto - Alexandra Martins

Distrito Drag – Como você enxerga o futuro da mobilização feminista no DF e no Brasil?

Dayse – Há homens que reivindicam serem feministas. Eu discordo. Mulheres são mulheres, independente de cisgênero ou transgênero. Eu vivi a inclusão das mulheres trans no movimento feminsta, vi a dificuldade delas de adentrarem ao movimento. Ele é diverso, tem muitas linhas e é importante que continue assim porque é importante vermos que as vozes são plurais. Mas o que ressalta como desafio é a inclusão das mulheres negras liderando esse movimento. O desafio é trazer a questão da raça, dos povos originários. Num país tão empobrecido como o Brasil, essas discussões são fundamentais. Trazer mais pro centro as discussões de etnia, raça, classe. A periferia precisa ser o centro, mas não só pra problematização da criminalização, mas o centro do acesso às políticas públicas, da melhoria da qualidade de vida. E as mulheres lésbicas são apenas um ramo desse grande encontro que é o movimento feminista. Somos muitas coisas, como devemos ser. Quando a gente se aquilomba, a gente se fortalece, cada um com seu tijolinho, a gente constrói uma nova realidade que não viola nossos corpos.

 

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