Bonnie Butch: “Vamos ocupar os espaços em que nascemos e vivemos”

Em 2020, no meio da fase mais difícil da pandemia de Covid-19, surgiu o coletivo Quebrada Queen, fundado por artistas da Ceilândia, a mais populosa e importante região da periferia de Brasília. Conheça mais do coletivo, de como aconteceu, e a história de uma das suas drag fundadoras, a Bonnie Butch.

Por Marcellus Araújo

O coletivo Quebrada Queen é muito mais que um grupo de artistas transformistas que vivem em Ceilândia que se reuniram para descentralizar a produção e a difusão da cultura drag, queer e diversa em relação ao centro de Brasília. É também uma ferramenta de construção de autonomia da comunidade LGBTI+ de uma das regiões administrativas mais importantes do Distrito Federal.

Uma das pessoas por trás do coletivo é a drag Bonnie Butch, que conversou com o Distrito Drag sobre todo o corre do Quebrada Queen e o quanto o surgimento dessa ideia é necessário para entender a relação dos territórios com as desigualdades sociais, econômicas e raciais que existem dentro do movimento LGBTI+.

Foto: Victoria Haus

Além disso, ela conta um pouco da sua história, como surgiu, os desafios que enfrentou, e ainda enfrenta, e sua relação com a comunidade lésbica. Leia abaixo a entrevista que foi extraída de uma conversa veloz, como é a fala, o raciocínio e a consciência de Bonnie, definida por ela mesma, como a drag sapatão de Brasília.

DD – O que é o coletivo Quebrada Queen?

Bonnie Butch – O coletivo Quebrada Queen começou no comecinho da pandemia, nos primeiros meses. Eram eu, Negrini, Wesley Gregório. Durante um tempo a gente se distanciou, mas depois retomamos. Elloá Negrinny deu esse nome. Antes ele se chamava Favela Queen. Mas ela veio com esse nome, que foi ótimo. O intuito inicialmente era descentralizar um pouco as coisas que só aconteciam no Plano Piloto. Blocos de carnaval, oficinas, eventos. Queremos trazer as coisas um pouco pra periferia. A Ceilândia é a maior periferia de Brasília, é onde está a maior parte das pessoas LGBTI de Brasília, e não só, no entorno também. Muitas pessoas da periferia muitas vezes deixam de ir pro rolê no Plano Piloto porque não têm o dinheiro da passagem. E na periferia muitas vezes elas conseguem chegar no rolê a pé. Além disso, a gente também busca uma reparação cultural. Eu, como artista da Ceilândia, sentia uma segregação. “Ela é bonitinha, arrumadinha, tem cara de Plano Piloto”, mas quando eu falava que vinha da periferia, as pessoas estranharam. Eu não posso ter uma boa make,uma boa roupa, ser educada? Se o corre hoje já é precarizado e apagado pra gente, antigamente era muito pior. Junto com Lee Brandão fizemos esse retorno das atividades, e começamos a recrutar as pessoas, com Elloá, Wesley Gregório, e convidamos outras pessoas a participar com a gente. Começamos na garra, com a primeira oficina multicultural que aconteceu no começo de agosto deste ano, com várias oficinas rolando simultaneamente, e a galera da periferia participando em peso. Teve rap, vogue, graffiti, teatro, música, dança, customização de roupa, dj, maquiagem.

 

 

DD – E como surgiu a ideia?

Bonnie – Até então iam ser vídeos. Aí veio a pandemia e fechou tudo. E surgiu a necessidade de montar o coletivo. Tivemos a reunião de ideias, projetos, e a coisa ficou engavetada e recentemente retomamos pra valer. E fizemos com as pessoas que acreditaram. Hoje temos eu, Lee Brandão, Eloá Negrini, Wesley Gregorio, Guerreira Lilian, André Gagliardo, que é Linda Brondi, Natália Vasconcelos, Allice Bombom.

 

 

Foto: Integrantes do coletivo Quebrada Queen. Crédito: Sandra Balthazar

DD – O que vocês já têm percebido com a atuação da Quebrada Queen?

Bonnie – Perifa e Plano sempre foram muito divididos né? Agora eu percebo que surgiu um olhar de esperança em algumas pessoas. Quando a gente pensa em blocos de carnaval na periferia, isso já é uma novidade. Muita gente ficou surpresa com a qualidade que as oficinas tiveram, com a organização, a estrutura e até com os certificados da oficina. As pessoas começaram a acreditar de verdade que isso tudo pode dar certo. Estamos começando, mas sabendo que podemos ocupar os espaços. As oficinas aconteceram em dois locais que a comunidade já frequenta, e isso é uma questão de resistência.

DD – Qual a importância desses lugares para comunidade da Ceilândia?

Bonnie – São dois bares que ficam um de frente pro outro. Hoje em dia se chama Bar Jato e o outro é o Pub Club. Os dois são pontos de resistência. Existem outros locais aqui, mas esses dois são de resistência, que começaram mesmo. No lava-jato, antes de se chamar Bar Jato, tínhamos já a Verônica Strass, Nonato, Scarlet Vasconcelos, que produziam eventos lá, e fizeram o espaço ser o que é hoje. Isso tudo começou em 2016, temos uns cinco anos nesse rolê. São lugares amigos e fazem o rolê. Os dois lugares se organizaram e fizemos uma gaymada, ocupando a rua, um espaço que é nosso, pra ocupar, resistir e chamar a galera.

 

DD- O que a organização das pessoas LGBTI na periferia pode influenciar na comunidade LGBTI pra torná-la menos desigual?

Bonnie – Acho que é você entender o espaço do outro, primeiramente. Quem tem a condição de entender seu privilégio de conhecimento, acessibilidade pra algumas questões. Uma drag do Plano tem acesso, dinheiro, produção. A da periferia não vai ter. É um corre pesado. Ela tem que aprender a fazer uma maquiagem perfeita com produtos baratos. Isso tudo dificulta muito. A galera do Plano precisa reconhecer o corre que a bicha faz. Quando a bicha vê uma foto de outra bicha no espelho da Victoria Haus, e o glamour daquilo, ela quer também. Mas muitas vezes ela só tem a grana da passagem, fica na balada sem beber nada pra poder estar ali. Então é importante a galera da periferia criar seus próprios eventos, com preços mais baratos, bebidas, ingresso, tudo. Estamos numa fase em que a favela e a periferia acordaram. Vamos ocupar os espaços em que nascemos, onde vivemos. A pandemia mostrou pra gente que muita coisa vale a pena estar onde estamos. E os produtores também começaram a trabalhar pra que as pessoas possam se comportar, pra ter respeito entre nós, pra não haver brigas. Isso é importante, é um conhecimento que está crescendo nas pessoas

 

DD – Vamos falar de Bonnie Butch! Como surgiu sua drag?

 

Bonnie – Até a data é exata, nasci no dia 26 de março de 2016, num carnaval que excepcionalmente foi em março. É sempre assim, ou nasce no carnaval, ou no halloween. Eu nasci no carnaval. Numa brincadeira entre eu e um amigo. Botei um salto e fomos pra festa. Vamos fazer de novo? Vamos. A primeira vez montada foi no Oficina Club, e depois no Espaço Galleria. Mas eu nem tinha nome. E depois eu fui me apropriando do que era ser drag queen, da arte. Eu já era DJ, e quando comecei com a montação, eu percebi que eu teria que agradar mais o público do rolê drag. Eu vi que as drags queriam se agradar muito e esquecem do público. Então o Múcio reconheceu que eu tinha preocupação com o público e em três meses eu estava como hostess do Oficina Club, então comecei a ter um espaço grande com o público. Fui muito julgada, com indiretas, mas eu não retrucava. Pensei em desistir. Quando eu tava num evento, sentei no carro, e começou a tocar Eclipse of the heart, da Bonnie Tyler. E eu pensei que eu não deveria desistir, e daí veio Bonnie. E todo mundo falava que eu tinha uma pegada sapatão, chegava princesa, e saía com a peruca debaixo do braço. E a Bonnie Butch surgiu no primeiro dia da boate Capital Club, com essa referência da mulher masculina, da sapatão. Cheguei na boate montada, e com a peruca na mão. Entrei, vi o pessoal me olhando. Quando eu cheguei no camarim pra botar a peruca, meus amigos olharam e falaram pra não colocar a peruca, pra eu ficar sem, e aí ela surgiu. Eu fiquei muito feliz porque as meninas lésbicas se sentiram representadas, e muitas me falam isso, que nunca viram uma drag que usava a referência da sapatão. Muitas vezes, nessa representação, a gente esquece das nossas manas caminhoneiras. Dia desses eu toquei no Gaiola Bar, e elas comemoram que existe uma drag sapatão, e ser uma drag queen para a comunidade lésbica. É muito gratificante pra mim. A maior parte das pessoas que me seguem são meninas lésbicas.

Foto: Eduardo Lima

DD E você recebeu apoio de outras drags no seu começo?

Bonnie – Eu não tive apoio de outras drag queens. Muitas vezes a gente vê drags endeusando outras drags e ignoram o público. Essa essência de estar com o público, eu busco não perder. E nisso, muitas deixam de existir. Eu era leiga, mas eu busquei conhecer, a didática, a representatividade, a nossa luta, sermos resistência. Nos atos contra  Bolsonaro, tinha drags, mas era pra ter muito mais. Eu fui de metrô, montada. Deu medo, mas isso é uma forma de resistência. Não é só glamour da festa. Eu fui montada de Dilma! Muitas drags esquecem disso.

 

DD – Qual sua bebida preferida?

Bonnie – Vão me chamar de cachaceiro. Kriskoff misturada com 51. Uma vez eu fui tocar num lugar chique, e me serviram um gin. Pedi pra misturar uma kriskoff pra ficar mais divertido, mas não tinha. É a bebida da perifa, amor! Uma coisa que eu quero deixar em ênfase com você: a Eloá hoje mora no Plano Piloto, ela, preta, nasceu no Plano, e eu, branca, nasci na periferia. Quando a gente chega no rolê, as pessoas acham que é o contrário. E quando a gente pergunta porque elas acham isso, elas gaguejam.

 

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