Katrinna Jhones: “A performance drag é uma intervenção social”

A artista conversou com o Distrito Drag sobre como a montação ajudou em sua transição de gênero, e também falou de superação, preconceito, família, a trajetória como drag, e a preocupação com as irmãs travestis 
Por Marcellus Araújo

Quando Katrinna Jhones aceitou conceder esta entrevista por vídeo chamada, ela sabia que o vídeo não seria usado, e que a conversa seria publicada em formato de texto. Mas, assim que apareceu na tela, estava linda: maquiada, com look, cabelo feito. “Ah, amor, não importa se você não vai gravar, eu não posso aparecer pra falar do meu trabalho e da minha história de qualquer jeito”, decretou. E assim começou a conversa que inicialmente deveria durar 40 minutos, e acabou durando duas horas e meia.

Foto: Rafael Viana Lino

Katrinna Jhones tem 32 anos, e atualmente mora com a mãe, em Sobradinho. Auxiliar de enfermagem formada, ela atuou por alguns anos na profissão até ser demitida, logo após assumir sua transição de gênero no ambiente de trabalho. É artista transformista, e começou a se montar e a performar em 2014. Agora, ela trabalha no Velvet Pub, uma das casas noturnas mais importantes para as drag queens do Distrito Federal. Fez graduação em artes cênicas na Faculdade de Teatro Dulcina de Moraes por dois anos, entre 2009 e 2010. Depois, estudou recursos humanos. Em 2015 conseguiu a graduação em auxiliar de enfermagem.

Além de tudo isso, Katrinna é uma mulher que encontrou na arte drag muito mais que uma forma de expressão artística. Encontrou a si mesma. “Escolhi esse nome porque queria um nome forte! As drags, quando escolhem um nome, querem uma coisa que chega chegando. É tsunami, é furacão!”. Mas o nome grandioso nunca blindou Katrinna. “Quando comecei a me montar, me chamaram de lixo. Já me deixaram no palco sozinha. Então, eu disse que teriam que me engolir, e me esforcei para isso. Hoje sinto que sou respeitada, abraçada e acolhida. Mas algumas que hoje me tratam bem, fizeram carão pra mim no passado”, conta.

Em 2019 ela representou a drag queen Marsha P. Johnson no Calendário Drag, publicado pelo Distrito Drag. “Foi uma honra representar uma pessoa que abriu tantos caminhos pra gente”, comenta. Em 2020, participou do projeto Pride Lockdown, da ONG Casa Chama, que trabalha com pessoas transgêneras. Seu trabalho artístico resultou no reconhecimento da atriz Taís Araújo, que postou no feed do seu perfil no Instagram (@taisdeverdade) um vídeo de Katrinna. “O vídeo da Taís Araújo pode ser pouco pra muitas pessoas, mas pra mim significa muito, porque ela é muito representativa, e se eu fui notada por ela, posso ir muito além”, define a artista.

Oportunidade

“Eu sou várias coisas, tenho várias profissões, estudo espanhol. Mas nada disso tem valor quando eu vou bater na porta das pessoas pra conseguir um emprego. É muito difícil, mas existem caminhos. Oportunidade é a palavra mais importante. Uma oportunidade pode me dar a chance de mostrar que eu sou capaz”, afirma Katrinna, ao falar sobre o estigma da prostituição compulsória, realidade de muitas mulheres trans e travestis no Brasil. O atual emprego da artista é “de carteira assinada e tudo”, como ela faz questão de dizer. “Performei várias vezes lá, na festa Wow Project, que é um outro coletivo de drag queens. Os meninos [do Velvet] então me chamaram pra fazer parte da equipe da produção. Eles me deram uma oportunidade”, confirma.

“Compreendo as minhas irmãs que estão trabalhando na rua [como garotas de programa], e eu sei das dificuldades de se arrumar um emprego sendo travesti. Não temos opção. Isso me machuca muito. É uma questão de poder escolher? A gente não tem opção! Quem me vê na rua, me lê como prostituta, mas eu não sou. Mas ninguém abre as portas pra gente. Tenho muitas amigas que são irmãs, e que estão descendo pra rua. É um emprego como qualquer outro, mas as condições de trabalho muitas vezes são muito ruins, cruéis. Algumas gostam desse trabalho, mas muitas outras não queriam estar na rua fazendo programa. Elas queriam estar em outro lugar, mas não têm nenhuma opção. São expulsas de casa, não conseguem conviver na escola e ficam sem estudar, então se vêem na rua, sem nada, sem lugar pra dormir, e a única porta que se abre é a da cafetinagem”, explica Katrinna, que nesse momento da conversa, fica muito emocionada.

Os contrastes das diversas realidades das amigas travestis são nítidos na observação que a artista faz. “Travestis que têm grana têm muitos acessos e são mais protegidas. Moram em bairros mais seguros, com as ruas iluminadas, cheio de porteiros nos prédios, e onde a polícia tá sempre rodando. Mas pra mim, que moro na periferia, que ando muito até a parada do ônibus, onde os caminhos têm pouca iluminação, é muito diferente. Quantas mulheres são estupradas nesses caminhos? São travestis e travestis. Quem tem mais condição precisa entender seus privilégios e ajudar outras pessoas. Existem várias formas. Desde uma peruca que você empresta pra uma amiga, até coisas que podem mudar a vida mesmo”, atenta.

Foto: Rafael Viana Lino

“Estar em todos os espaços é um direito nosso. Nós somos vistas quando temos que pagar impostos. Mas na hora de procurar um emprego, somos invisíveis. Você pode ver uma travesti no bar, no salão de beleza. Mas na padaria, não”, conclui. Mesmo assim, a performer, produtora, enfermeira e maquiadora pondera que “não digo que nunca vou viver do programa, porque não sei o dia de amanhã, não sei se vou precisar disso. Mas quando percebi que comecei a ficar conhecida no rolê, tinha em mente que precisava fazer algo pelas minhas irmãs que estão na rua. De repente, através da minha marca e da minha história, eu posso fazer algo por elas”. 

Antes do emprego atual, Katrinna trabalhava como técnica de enfermagem no Hospital Santa Lúcia, e relata que sofria muita discriminação no ambiente de trabalho. “Falei com a psicóloga e a responsável pelo departamento de recursos humanos, e assumi a minha transição de gênero. Dois meses depois, fui demitida. Disseram que iam diminuir o número de funcionários quando a pandemia começou, mas quase ninguém saiu da equipe, pelo que eu soube. Trabalhava lá há quase dois anos”, afirma.  

História
A discriminação era tão intensa durante a fase escolar, que Katrinna chegou a repetir um ano. “Era preta, pobre e gorda, então imagina… eu escutava de tudo. E a direção da escola não fazia nada por mim. A única solução era matar aula. Eu ficava vagando na rua ao invés de ir pra escola, pra não sofrer tudo aquilo. A única pessoa que me ajudava na escola era uma única professora. Sempre fui uma criança muito afeminada, muito fora do padrão do que minha família esperava. Quando eu tinha 15 anos, muitas amigas começaram a se hormonizar, deixar o cabelo crescer. Mas por vários medos, eu não fiz nada”, lembra. Ela enfatiza que cada pessoa tem um tempo pra decidir começar a fazer a transição, e nesse caso, por medo “de não conseguir emprego, de ser enxotada de casa, da família virar as costas pra mim, eu não fiz nada”.

Foto: Rafael Viana Lino

Até que em 2013, aos 24 anos, ela reencontrou um ex-namorado da época da escola, e voltaram a namorar. No ano seguinte, foram morar juntos, em um apartamento no Grande Colorado. O namorado apresentou a ela Rupaul ‘s Drag Race, o reality show de drag queens mais popular do mundo. “Do nada chegou esse namorado que me mostrou esse mundo. Então, rolou uma festa de halloween na Victoria Haus, mas a gente não tinha fantasia, nem nada. Mas nos fantasiamos e fomos pra festa montadas. Com uma hora andando de salto na festa, sentamos e ficamos o resto da festa ali, de tanta dor no pé”, lembra. “Mas eu não desisti! Então, uma amiga me disse que se eu quisesse ficar conhecida, eu tinha que colocar a cara na noite, me montar e estar sempre na cena”.

Através da drag queen Katrinna, tudo mudou. “Ela me abriu portas inclusive pra ajudar a minha mãe a digerir a minha transição de gênero. A drag Katrinna me ajudou a descobrir que eu poderia ser a Katrinna. E ser mulher me ensina que a gente pode tudo. A drag me deu força pra chutar o pau da barraca e resolver as minhas questões. Comecei a perceber que a minha drag era meu lugar de conforto, e que tava tudo diferente, porque eu já não era mais um ator performando. Esta era a forma que eu queria estar o tempo todo. Era tanto o meu local de conforto, que todo mundo percebia isso. Diziam que eu trabalhava montada 24 horas por dia. Então fui percebendo no meio do caminho que a Katrinna não era uma personagem, era eu mesma”.

“A arte transformista é incrível porque ajuda a gente a se transformar. É um ritual e ao mesmo tempo uma terapia, porque enquanto você tá se maquiando, pensando em um look, você reflete sobre suas questões, pensa em muitas coisas. E isso sempre acontecia. No ato de colocar um adereço, de quebrar o rosto com a make, me tornar mais feminina, me enxerguei melhor”, revela.

Ser mulher
Um dos maiores medos da artista a respeito da sua transição, era a reação do pai. “Mas como ele trabalha como pai de santo, convive com algumas travestis e pessoas trans. Então, ele me aceita, e está se corrigindo, se esforçando pra respeitar meu nome e tudo. Eu vejo isso”. Já com a mãe, a aceitação acontece em um ritmo diferente. “Ela tenta, mas é muito fechada. Queria me abrir mais, e ter a compreensão dela. Fui criada pela minha mãe, e hoje a gente mora juntas. É importante pra mim que ela me respeite, sabe? Ela sempre colocou empecilhos, mas todo dia eu tenho que mostrar pra ela que existem muitos caminhos possíveis pra minha história”, conta Katrinna, que fica, novamente, muito emocionada.

“Eu tento mostrar que somos todas as mulheres, que podemos fazer qualquer coisa. Mulheres pedreiras, eletricistas e caminhoneiras também mostram isso. A gente já se iguala em muitas coisas. Os salários são desiguais, mas já tivemos uma presidenta, como a Dilma [Rousseff]. Podemos ser todas as coisas. Minha experiência como mulher leva pra minha arte drag todas essas questões, pra que as pessoas possam refletir sobre isso. Na arte drag abordamos muitas problemáticas, mas essa é uma questão que poucas abordam. E uma performance drag também é uma forma de fazer uma intervenção social”, defende, e encerra dizendo que sua bebida preferida é gin com frutas. “Deus me livre de gin puro, mas hibisco, por exemplo, dá um toque muito especial na bebida, e eu adoro”.

“Eu tento mostrar que somos todas as mulheres, que podemos fazer qualquer coisa. Mulheres pedreiras, eletricistas e caminhoneiras também mostram isso. A gente já se iguala em muitas coisas. Os salários são desiguais, mas já tivemos uma presidenta, como a Dilma [Rousseff]. Podemos ser todas as coisas. Minha experiência como mulher leva pra minha arte drag todas essas questões, pra que as pessoas possam refletir sobre isso. Na arte drag abordamos muitas problemáticas, mas essa é uma questão que poucas abordam. E uma performance drag também é uma forma de fazer uma intervenção social”, defende, e encerra dizendo que sua bebida preferida é gin com frutas. “Deus me livre de gin puro, mas hibisco, por exemplo, dá um toque muito especial na bebida, e eu adoro”.

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