Uma das pioneiras da arte drag do DF fala sobre o começo da montação, há 26 anos atrás, e explica como a alegria é poderosa no combate ao preconceito no dia a dia do trabalho na arte transformista
Por Marcellus Araújo
Babado e confusão! Duas das palavras que Allice Bombom mais usa também servem pra descrever a sua energia e sua presença artística. Conhecidíssima como a noite de Paris, só que aqui no Distrito Federal, ela é uma das pioneiras da arte drag local, e sua marca registrada não são os bombons artesanais que ela mesma faz e vende de bar em bar até hoje. Allice é um sinônimo de fada sensata e rainha acessível muito antes dessas expressões serem inventadas.
Alexandre começou a montar a Allice em 1995. “É uma confusão, porque você fala com o Alexandre, mas é Allice quem responde. É o babado, a confusão”, diz ela, logo no começo da conversa.
Depois de servir a Marinha, Alexandre começou a trabalhar em uma casa de festas, onde fazia decorações, doces, de tudo um pouco. E nessa época, assistia muitos programas de entretenimento com performances de transformistas.
“Um dia me chamaram pra uma festa em Taguatinga em que pessoas montadas de drag entravam de graça. Criei pra esse dia o nome de Alice Simpson, me montei muito doida e fui. E eu já fazia bombom em casa nessa época.
E meus amigos nessa festa começaram a me chamar de Alice Bombom, e ficou. Entrei na festa como Alice Simpson, e saí como Allice Bombom, e aí pra ficar mais glamourosa, eu coloquei mais um “L”. Quase 27 anos fazendo isso, é muito prazer, muito amor”, ela define.
Distrito Drag – E nesse tempo todo, de que você mais gosta em ser drag?
Allice – O que eu mais gosto é poder estar na frente de luta contra o preconceito, e ser aceita, porque eu criei uma estética pra minha drag que me ajuda a transitar em vários ambientes, como se estivesse protegida em um casulo.
DD – O que é ser uma drag em Brasília?
Allice – É ser resistente e persistente, porque tudo é muito complicado e muito difícil. É preciso ser muito criativa. Fui praticamente forçada a ser criativa. Mas já havia um feeling pra arte visual, plástica, e eu ainda sou cênico.
DD – Como você enxerga o futuro da arte drag?
Allice – O que eu percebo atualmente é que a facilidade da internet ajuda muito as neófitas, a criarem seus personagens, a começarem mais completas, porque elas têm a facilidade pra conseguir letras de música para dublar, fazer maquiagem, e tantas outras coisas. Quando eu comecei, a gente ficava com o ouvido grudado no rádio pra poder aprender a música. A internet foi o que há, e pra gente, agora, porque temos que acompanhar o ritmo, não podemos estagnar. É importante também ter conhecimento, pras novinhas saberem a história da arte drag, elas precisam saber. Hoje muitas têm mães drags, pessoas que dão o empurrão. Muitas hoje me tem como referências, porque eu as ajudei, mesmo que eu não tenha dado seu sobrenome, não sou mãe delas, mas fiz esse papel.
DD – Quem é uma referência drag pra você?
Allice – Minha referência principal é Dimmy Kieer. E o mais legal é que depois do BBB ficamos amigos, e somos amigos até hoje!
DD – Você tem noção da importância da Allice Bombom pra a cena transformista do DF?
Allice – Eu vejo isso por transitar em lugares em que a militância mais organizada não consegue entrar. Como eu vendo os bombom em bares, e em muitos bares héteros, mostro que estamos firmes e fortes na luta, ali estou como artista, mostrando que a gente merece respeito, independente da indumentária, de qualquer coisa. É engraçado uma coisa. Quando eu vou feminina demais, eu não fico muito confortável, tranquila, porque vejo um pouco de rejeição, onde vem a questão da transexualidade não ser aceita. E eu vejo isso por mim mesmo, pelos anos de trabalho, e é onde eu tento quebrar essa barreira.
Agora, é legal ver que as mulheres veem nosso lago exagerado de drags e também querem se montar. Tem mulheres que acreditam na arte drag e também se montam, também se empoderam nesse sentido. E isso nos coloca a também questionar esse exagero, porque são personagens, a arte drag é um artista performático.
DD – Nesses 26 anos de Allice, o que mudou na comunidade LGBTI+?
Allice – O que mudou foram os ganhos, mesmo com muitos processos em andamento, mas a criminalização da homofobia pelo STF é um ganho, com outros avanços como a união civil. Mas a luta é constante, não ganhamos nada ainda não, na verdade. Não esmorecer é um fato.
DD – E o que ainda permanece igual?
Allice – Às vezes eu pergunto pra algumas amigas “o que eu to fazendo aqui?”, “qual é a minha existência?”, “o que eu tô fazendo de bom?”, “só de eu existir tá sendo gostoso?”. Tá, eu tenho mais de 20 anos de processo artístico, mas será que só minha existência é suficiente? Eu me monto por prazer, e se ele não existir, não funciona. Gosto de estar nos bares, nos eventos procurando respeito de fato.
DD – Como a pandemia afetou o seu trabalho?
Allice – Eu trabalho na JK FM. Quando a pandemia começou, eu fui dispensada. E eu dependo dos bares. Foi um choque. Aí eu tentei me jogar na internet, vender os bombons online, mas foi uma confusão e não deu. E com uma porrada dessas, a gente revê o que a gente fez e não fez ao longo da vida, né? O que me segura mais é a participação na rádio, o cachê dela. Mas agora, com a flexibilização, eu saio pra vender os bombons, seguindo todos os protocolos de segurança. Não frequento festa alguma, isso eu decidi no início e sigo assim.
DD – Qual a sua bebida preferida?
Allice – Água, meu filho! Na rua, só água! Se for pra beber em casa eu curto um martini, um vinho branco. Mas como eu sempre saio de casa de carro, dirigindo sozinha, eu não bebo na rua. Sempre me param em blitz. Imagina isso, a polícia me para e eu assim, montada, muito discreta, e ainda bêbada? Imagina a confusão? E olha, graças a Deus eu nunca sofri preconceito com eles (policiais militares). E quando numa blitz eles me param, falam comigo com respeito, e rimos juntos, aí eu ganhei o dia, porque precisamos quebrar a barreira é justamente ali.