ARTE DRAG É TEATRO, ARTE DRAG NÃO É TEATRO

Foto: Reprodução

Por Beatrice Papillon

 

Durante muito tempo, para explicar a minha personagem drag queen, engrossei o coro que conta a origem dessa linguagem artística citando episódios variados da história do teatro universal. Dos atores travestidos no kabuki japonês aos meninos afeminados do teatro shakespeariano, de onde inclusive o termo “drag” teria surgido como abreviação para dressed as a girl (vestido como uma menina). E via que depois da muito longa e muito erudita explanação, meus interlocutores afinal iluminavam seus olhares e se mostravam interessados por essa história com ares assim tão importantes.

Sempre me pareceu lógica esta explicação sobre as drag queens, mas me incomoda um pouco. Sinto como se estivesse tentando justificar, com esse compêndio histórico bibliográfico, algo de que supostamente deveria me envergonhar. Uma arte menor, vulgar, uma viadagem. É como um salvo conduto: dizemos que a Shakespeare é nossa avó e pronto, já não somos mais um bando de bichas, sapatões e travestis dando pinta, agora somos artistas. Agora?! Por que? Para agradar a quem? Por que precisamos de qualquer tipo de aprovação estética, linguística ou histórica. À merda tudo isso. A Drag Queen nasceu para manter suas irmãs e irmãos LGBTQIA+ alegres, para terem esperança e, principalmente, permanecerem vivos! É por isso uma grande arte em si. Ponto. Não precisa das bênçãos dos grandes eruditos com suas implacáveis espadas de consagrar cavaleiros ou cortar cabeças.

Sim, de fato, são muitas as fontes da história do teatro que podemos atribuir a uma possível “árvore genealógica” de nossa arte. Mas temos inúmeras outras fontes em que também bebemos para criar nossas performances. A teatralidade, não o Teatro, é uma habilidade inata e espontânea do ser humano. Então neste sentido, podemos dizer que a performance drag veio do teatro, mas precisamos ampliar este conceito de “teatro” para além das salas de espetáculos. Especialmente aquelas surgidas no ocidente após a ascensão da burguesia capitalista, aquele teatro que integra e sustenta uma elite cultural que serve ao mesmo mundo que exclui sistematicamente a comunidade LGBTQIA+.

De que teatro então estamos falando?

Para chamar-nos de teatro, é preciso reconhecer o Teatro fora destes teatros e, principalmente, fora da régua dessas elites culturais.

O teatro, assim como a arte drag, nasceu de gente desimportante, pessoas comuns, sem grandes cargos ou sobrenomes de grandes famílias. Nasceu para divertir o povo e defendê-lo (ainda que os nobres e clérigos tenham se aproveitado muito da cena). As drag queens e os atores… Que puseram esse mesmo povo pra pensar sobre suas vidas, sofrimentos e injustiças. Os atores e as drag queens… Através dos séculos. Gente considerada pária. Entregue a atividades indignas, imorais, pagãs. Cidadãos de segunda classe. Proibidos de receber sacramentos em vida ou na morte de terem seus corpos enterrados em solo consagrado. A arte drag, como o teatro, não nasceu nas grandes e luxuosas salas de espetáculos da burguesia, nem tem, como o teatro durante séculos não teve, seus registros preservados nos grandes museus. Esses artistas, uns como os outros, construíram linguagens poderosas para denunciar os tiranos de seus tempos e lugares. Linguagens políticas criadas por populares para a defesa de seus iguais, de sua comunidade, da vida, da justiça e da beleza.

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Para comparar as drag queens hoje com o Teatro é preciso olhar para o teatro dos grupos mambembes, dos desobedientes, dos que não se dobram. Não o do Credicard Hall. O teatro que é feito pelos excluídos, pelos historicamente excomungados. Mas é preciso também reconhecer ainda a teatralidade do povo, das festas populares, do carnaval de rua, dos batuques e dos ritos ancestrais, dos sambistas, dos feirantes cantando seus produtos, dos crooners de puteiro, do comediante das estações do metrô, a teatralidade de uma gay anônima dançando bêbada no salão, das strippers, da tia do cachorro quente que nos atende cantando louvores, do cabeleireiro que a cada grampo que solta da cliente dá uma rebolada. Todos esses teatros nos interessam e viram números fabulosos nas nossas mãos. Porque a questão não é estética ou de linguagem ou de erudição, senhores, a questão é social. O teatro de uma drag queen vem de qualquer lugar que nos pareça luxuosamente humano. E vira música, colorido, dança, grito e liberdade. É a plebe em revolução!

Hoje é um dia de orgulho, Dia Internacional da Drag Queen, dia de celebrar uma arte que, assim como o teatro, nasceu para pensar o mundo e o ser humano. Uma arte totalmente independente política e socialmente. Artistas que, em todo o mundo, contra todas as formas de cooptação, só têm um único compromisso a manter. Não é com as estéticas, com conceitos artísticos ou empresariais, nem mesmo com a Cultura. Nosso único compromisso deve ser, hoje e sempre, com a absoluta e inegociável Liberdade. 

Para isso a drag queen faz seu teatro.

Salvador, 16 de julho de 21

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